domingo, 26 de fevereiro de 2012

REINTRODUÇÃO DE PRIMATAS E OUTRAS ESPÉCIES

Colaborador Roberto Rocha

 As diversas espécies da Terra estão distribuídas em diversos continentes como resultado de um fenômeno muito antigo que continua a existir até hoje, a deriva continental.  Não temos noção exata dessa movimentação dos continentes no nosso cotidiano. Você pode estar “parado” - em qualquer lugar - e jurar que o mundo sob os seus pés está imóvel. Mas isso não é verdade.  Tudo se move.  Os continentes que existiam no passado, não são exatamente os mesmo de hoje.  Da mesma forma, as plantas e os animais também já mudaram suas “versões”. Imagine encontrar uma criatura fóssil – de mais de 200 milhões de anos - “pastando” no seu quintal? É verdade que os descendentes deles estão por aí, mas eles estão agora mais modernizados. 

Esses fatos curiosos estão associados a uma ciência atual conhecida como Biogeografia, que estuda a distribuição dos organismos no planeta. Ela mesma pode ser subdividida em Fitogeografia (estuda a distribuição dos vegetais) e a Zoogeografia (estuda a distribuição dos animais). No caso dos estudos das criaturas fósseis, temos também a Paleobotânica (ciência que estuda vegetais que já desapareceram no tempo geológico) e a Paleozoologia (idem, para os animais).  Essas ciências são importantes para conheçamos a história da vida na Terra e sua evolução.
 A convivência de algumas espécies  - por milhares ou milhões de anos - fez com algumas regras fossem estabelecidas, garantindo o uso da crosta terrestre para todos.  A ocupação de um determinado espaço, na linha do tempo, depende de códigos e regras, além de outras características físicas e químicas, geológicas ou climáticas.

 O conhecimento científico desenvolvido pelo estudo do relacionamento dos organismos entre si e como os ecossistemas onde vivem, tem ajudado nas ações de manejo de fauna e flora, seja para fins econômicos, seja para a preservação de espécies. Por exemplo, a Etologia – ciência que estuda o comportamento das criaturas - pode contribuir de forma definitiva para se tentar salvar uma espécie da extinção. 

Embora a Ecologia - como ciência multidisciplinar – ainda seja muito recente, já existem pesquisadores interessados em saber como as espécies usam os seus respectivos “ambientes” e que trocas ocorrem nessas interações. Uma das ciências interessadas nessa área é a Primatologia - que estuda a vida dos primatas. Esta ciência vem recebendo múltiplas contribuições por parte dos pesquisadores em geral. 

Diversos trabalhos têm sido publicados tanto por parte de quem se interessa pela biomedicina, como por parte dos conservacionistas. Os estudos ecológicos envolvendo primatas no Brasil crescem rapidamente, envolvendo especialistas de diversas áreas. Entre tantas medidas necessárias, conhecer o comportamento alimentar/reprodutivo de uma espécie é fundamental para se iniciar um “programa” de preservação.

Existem diversas espécies de primatas endêmicos da Mata Atlântica do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, o muriqui do gênero Brachyteles, o sagui-da-serra do gênero Callithrix e o mico-eão-dourado do gênero Leontopithecus, entre outrosEssas símios fluminenses já reproduziram em cativeiro e continuam com suas escassas populações ameaçadas, devido à destruição e à fragmentação das florestas remanescentes onde ainda podem ser encontrados. Um dos grandes desafios atuais é justamente encontrar áreas seguras para que esses animais possam viver em segurança. Entenda-se aqui a possível intervenção de fatores limitantes físicos. químicos e biológicos que podem afetar a sua sobrevivência, entre eles alguns vírus que podem ser letais para tais espécies.
   
 MURIQUI ou MONO-CARVOEIRO, o maior primata brasileiro que pode pesar 15 quilos. 

Assim como acontece com a espécie humana, os primatas não-humanos também se organizam em grupos organizados que são mantidos através de regras rigorosas de hierarquia. A organização da família não é igual para todas as espécies. Em relação ao comportamento reprodutivo, por exemplo,  um macho pode copular com mais de uma fêmea, como no caso dos muriquis (Brachyteles arachnoides e B. hypoxanthus).  Eles são os maiores primatas do Brasil.
Esta situação não ocorre com o  sagui-estrela, também conhecido como sagui-de-tufos-brancos (Callithrix jacchus) e ainda com o Callithrix peniccillata (sagui-de-tufos-pretos), ambos originários do nordeste e que foram introduzidos indevidamente no Rio de Janeiro,  já há muitos anos. Existem relatos que esses saguis estão formando pares com o sagui-da-serra (Callithrix aurita) uma rara especie de sagui típica da região serrana fluminense. Veja foto ao lado.


No caso desses sagüis, o macho copula sempre com a mesma fêmea (monogamia). Nesse caso de família do tipo -  unidos até que morte nos separe - o casal permanece fiel um ao outro.  O mesmo ocorre com o mico-leão-dourado (Leontopithecus rosalia) nativo do Estado do Rio de Janeiro, outro legítimo representante fluminense e um dos símbolos da conservação de primatas no mundo.

 Um sauim primo do nosso mico-leão-dourado é o mico-leão-de-cara-dourada (Leontopithecus chrysomelas), bastante conhecido, por exemplo, no estado da Bahia . Alguns desses animais são abatidos a tiros de espingarda. Já tivemos a oportunidade de ver alguns desses animais com o corpo cheio de "caroços de chumbo".  Embora, atualmente, não seja uma prática comum em todos os estados brasileiros, ainda assim, eles são uma fonte de proteina nobre em locais onde é difícil criar gado, por exemplo, em áreas densamente florestadas. 
Outro primata da Mata Atlântica é o mico-leão-preto (Leontopithecus chrysopygus), mas que também não ocorre no estado do Rio de Janeiro. É paulista autêntico. No entanto, é possível que possa chegar até aqui, transportados pelo homem. Nesses casos esses animais - "de outras paragens" - devem retornar à sua área original para evitar problemas genéticos e sanitários. Essas "translocações" exigem conhecimentos técnicos especializados. Essa necessidade ocorre, em especial. para cumprir as normas internacionais de manejo de espécies em vida livre.  Programas de longa duração acompanham a vida desses animais até que possam restabelecer suas populações, evitando assim sua "deterioração genética". 
A família de um mico-leão (Leontopithecus) está organizada a partir de um casal reprodutor, acompanhado de duas crias recentes (bebês lactentes), dois irmãos mais novos (crianças) e dois irmãos jovens ou subadultos. Esta organização conta com 8 (oito) indivíduos em sua base estrutural, podendo haver algumas variações. Você poderá perguntar: e como é que eles formam novos casais? Os irmãos mais velhos casam entre si e continuam no “bando”? Não seria desejável que – do ponto de vista genético – os novos pares tivessem genes diferentes daqueles encontrados numa mesma família? Isso não causa problemas futuros? A resposta é a mesma que serve para nós, primatas sem cauda. Certamente que haverá problemas de consanguinidade ou endogamia, como dizem os cientistas. Não é nada saudável para qualquer espécie, que mantenha por muito tempo indivíduos estreitamente “aparentados”. 
A sobrevivência de certas espécies depende muito da variabilidade genética. Precisam revitalizar seus “genomas” para que tenham viabilidade biológica. Um primata que viva em área pouco extensa, sem possibilidades de trocar material genético, não conseguirá manter seu “ótimo desempenho” para levar à frente os seus genes. Quanto mais extensa e contínua seja uma área, maior chance de variabilidade existirá. Um dos desafios encontrados em cativeiro (ex situ) e em vida livre (in situ) e reproduzir indivíduos que cujos descendentes não sejam “aparentados”.  Em alguns casos, quando é feito um estudo genético do casal reprodutor, percebe-se que eles são filhos de uma mesma fêmea ou macho. Nesses casos o melhor é separá-los e formar um novo casal “desconsanguineo”.  Em vida livre, à medida que os filhos mais velhos se tornam maduros, eles se afastam do grupo. Em cativeiro, podem ocorrer lutas mortais, envolvendo os animais dominantes (alfa) e outros que desejam reproduzir (betas). É preciso ficar atento para separar os betas para outro viveiro antes que haja algum “desentendimento” entre eles. Esses novos animais serão os fundadores de uma nova família, em “outro recinto”. Quando isso ocorre em vida livre, eles também vão ocupar “novo território” e formar nova família. No entanto se também forem aparentados, a consangüinidade continuará. Esse conhecimento é básico para quem trabalha com conservação de espécies.
As práticas de introdução e reintrodução de espécies tem sido motivo de acaloradas discussões pelo mundo, especialmente em áreas protegidas circundadas por cidades. Gatos, cães, ursos, gambás, pombos, pardais, lebres, javalis, ratos e camundongos, entre outros, todos provocam algum tipo de discussão, muitas delas cercadas de desconfianças, descréditos e boa dose de sentimentalismo.
Espécies “exóticas”, que vieram de ecossistemas onde a sobrevivência é mais desafiadora, conseguem se aclimatar muito bem em ecossistemas mais “dadivosos”. Isso não significa que terão menos problemas na esfera genética. São coisas bem diferentes. Uma família pode viver muito bem num determinado ambiente e estar fadada ao desaparecimento em algumas décadas por “degeneração” genética. Espécies de outros biomas ou países também podem causar distúrbios no funcionamento dos ecossistemas onde passam a viver. Ocorre que não há aquele “acordo de cavalheiros”, construído ao longo de milhares de anos, permitindo o que chamamos de coevolução. As espécies trabalham em cooperação para manter seus padrões de sobrevivência. Quando essa teia é “desrespeitada” - especialmente por interferência humana -  o ecossistema pode sofrer deterioração até que uma nova “conformação” se estabeleça. Animais que saqueiam ninhos em busca de ovos e filhotes – quando não existe algum predador que os controle – podem aumentar rapidamente em número, e prejudicar, por exemplo, a polinização de flores e a dispersão de sementes. Pássaros nascem de ovos!  Menos ovos, menos aves. Menos aves, menos sementes circulando. Menos sementes, menos plantas. Menos plantas, menos alimento e abrigo para todos. O mesmo ocorre com os insetos, excelentes polinizadores que são e que podem ter suas populações afetadas. Boa parte deles faz parte da dieta de outros animais. Alguns insetívoros são muito específicos e podem desaparecer junto com eles se não puderem mudar de lugar.  A interação planta-animal também pode ser vital para determinadas espécies. Algumas borboletas – embora se alimentem de néctar - desaparecem rapidamente de uma área se a planta que serve de alimento para suas larvas for eliminada.
Não devemos observar uma floresta apenas com base em particularidades. Precisamos compreendê-la através de uma visão complexa, exatamente como é um ecossistema. Somos ainda tremendamente ignorantes nessa área. Faltam pesquisadores experimentados. Muitas unidades de conservação no Brasil (parques, reservas entre outras) carecem de planos de manejo, de técnicos, de equipamentos e de recursos para atendimentos de emergências.
Técnicas conservacionistas, que usam a reintrodução como ferramenta principal, estão disponíveis graças aos esforços de Grupo de Especialistas em Reintrodução da IUCN. (União Mundial para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais). Seus técnicos estão espalhados pelo mundo orientando e executando ações de manejo e restauração da biodiversidade. Através desses especialistas podemos conhecer informações essenciais para implementação  de  políticas e práticas que visem o estabelecimento de populações viáveis em seus habitats naturais.
Recente trabalho de Corai (2011) pode ser baixado através da internet para consultas e pesquisas complementares.  Disponível em: www.iucnsscrsg.org
 Como se pode notar, manejar espécies selvagens em vida livre é tarefa desafiadora e depende muito da integração das equipes que costumam atuar nessas missões.  Em geral são três equipes: a) a equipe que localiza e captura os animais na área de resgate; b) a equipe que recepciona os animais capturados para exames de rotina, pesquisa genética, tratamento médico e medidas preventivas; c) a equipe de recepção e monitoramento dos animais selecionados na área onde serão reintroduzidos.
O apoio da comunidade - tanto da área de coleta, como da futura área de reintrodução - também contribui para o sucesso dessas operações.  A comunidade leiga não possui conhecimentos técnicos sobre manejo em vida livre e tendem a perceber tais iniciativas como uma ameaça, porque implica numa série de operações que fogem dos padrões convencionais de “trato” com os animais.  No entanto o que está em jogo é garantir a viabilidade genética da espécie e não exatamente o seu “status” atual. Nesses casos, uma eficiente rede de informações pode esclarecer a todos o que está acontecendo e os seus porquês.
 O cenário que se apresenta no mundo atual é preocupante. Mesmo que tenhamos boa parte dos recursos necessários para a prática de ações conservacionistas, ainda sim, vamos perder um grande número de espécies de vertebrados do planeta nesse século XXI. Diversas populações remanescentes já chegaram a um nível tão estreito de consanguinidade que não serão viáveis nos próximos 50 anos. 
As listas de espécies ameaçadas só aumentam a cada ano, seja a nível internacional, nacional, estadual ou municipal. O Brasil sempre foi marcado pela devastação das florestas para monoculturas diversas. É uma questão histórica e cultural que, infelizmente, ainda persiste. A maioria dos municípios no Brasil, sequer, possui listas das espécies vegetais e animais que ocorrem em seu território. Mas muitas delas sabem quantos carros e caminhões possuem. Quantos habitantes moram lá. Conhecem bem suas estradas de asfalto e terra, mas pouco ou nada sabem sobre suas florestas.
São insuficientes os projetos de preservação de espécies se considerarmos o total de organismos ameaçados no país.  Ainda vivemos num mundo onde as edificações são mais lembradas do que um animal ou uma planta ameaçada. Os projetos de conservação de espécies precisam de maiores e melhores recursos. Os projetos de conservação precisam ser ampliados. Tivemos alguns sucessos, mas eles são insipientes no cenário da biosfera.
Não tocamos aqui no mundo das águas doces e salgadas. Também lá as criaturas estão desaparecendo rapidamente, em especial no mundo dos corais. Por outro lado a pesca industrial predatória não destrói somente espécies, ela faz pior: “raspa” o fundo dos mares, impedindo a recuperação das populações que perdem também os seus abrigos e áreas de alimentação.
 Apesar de nossa inteligência de primata sabido e civilizado, o nosso comportamento mais recente não parece estar contribuindo para o bom funcionamento dos serviços dos ecossistemas. Podemos ser “produtivos” sem ser “deletérios”. O bom senso deve orientar nossas ações. Não vamos acabar com o planeta, conforme afirmam por aí. Não conseguimos nem mesmo, equilibrar nossas economias! A Comunidade Européia que o diga...  Somos sim, arrogantes e pretensiosos. 
Mesmo um tanto lesado, o planeta vai continuar a cumprir seus ciclos inexoráveis. Nós vamos perder rios de dinheiro até chegar à conclusão que adotamos um modelo equivocado de produção. Não temos que produzir nada em excesso. Temos apenas que colher, respeitando as regras de Gaia - a nossa Terra-mãe - sem exageros.
O  que fizemos com a nossa inteligência privilegiada?  A Terra tem quase cinco bilhões de anos de existência e sempre foi competente na administração dos seus recursos. E nós - desde a Revolução do Neolítico - que destino traçamos para a nossa espécie?
REFERÊNCIA
Corai, P. S. (ed.) (2011). Global Re-introduction Perspectives: 2011 More case studies from around the globe. Gland, Switzerland: IUCN/SSC. Re-introduction Specialist Group and Abu Dhabi, UAE: Environment. Agency-Abu Dhabi. xiv + 250 pp.


OS PRIMATAS E SEUS TERRITÓRIOS: naturais, construídos e invadidos.

Colaborador: Roberto Rocha

 Nós hominídeos (Homo) somos primatas diferenciados, extremamente curiosos e versáteis.  Integramos a mesma ordem zoológica “Primates” (primeiros, em Latim) da qual fazem parte os antropoides de grande porte (great apes) - desprovidos de cauda - como os chimpanzés (Pan), gorilas (Gorilla) e orangotangos (Pongo) – e ainda outros menores, como os gibões - lesser apes – Hylobates e Symphalangus. A ausência da cauda é típica dos primatas altamente inteligentes, talvez porque precisaram aguçar suas estratégias de sobrevivência, pela perda de uma “ferramenta” tão importante para quem precisa se apoiar aqui e ali, entre tantos galhos. 

Os símios que vivem a maior parte do tempo longe do solo são chamados de “arborícolas”, ou melhor, os que vivem nas árvores. É verdade que alguns primatas sem cauda também usam as árvores, onde constroem suas “camas”, longe de predadores que rondam todas as noites em busca de uma presa desatenta.

A territorialidade é uma das características dos primatas. Embora aprecie o contato da pele, isso só deve ocorrer sob condições especiais, dentro do grupo, devidamente autorizado.  Cada “família” – grande ou pequena – ocupa e defende sua área de uso. Essa característica acompanha os primatas de todos os tipos, mesmo aqueles muito estranhos e pouco conhecidos – como os prossímios – nem sempre parecidos com os “macacos” que estamos acostumados a ver em zôos. Esses primatas primitivos e já muito ameaçados vivem no sudeste asiático, na África, e boa parte deles em Madagascar. Seus nomes também são estranhos para nós, como os lêmures, lóris, galagos, entre outros. É incrível acreditar que também sejam nossos parentes ainda que distantes.

Outros primatas que costumam aparecer em documentários e vídeos sobre a África e a Ásia, por exemplo, o babuíno (Papio), o mandril (Mandrillus), o “rhesus” (Macaca), guenons (Cercopithecus), entre outros.

Na região oriental do Brasil estamos mais familiarizados com os saguis (Callithrix, Leontopithecus), o macaco prego (Cebus), guaribas (Alouatta), guigós (Callicebus), muriquis (Brachyteles).  Na Amazônia vivem os “aranhas” (Ateles), “barrigudos” (Lagothrix), “uacaris” (Cacajao), “cuxius” (Chiropotes), macaco-de-cheiro (Saimiri), macaco-da-noite (Aotus), paraguaçus (Pithecia), sauins (Saguinus e Mico), sagui-leãozinho (Cebuella), soim-preto (Callimico) e um dos recém-descobertos, o sagui-anão (Callibella).
 São dezenas de espécies ocupando áreas verdes distribuídas nos biomas brasileiros.  A urbanização, a criação de gado e a implantação de monoculturas (soja, milho, cana-de-açúcar, entre outros) - devastaram vastas extensões do território brasileiro, onde viviam os primatas. Não há como um primata arborícola (por exemplo, o muriqui - foto ao lado) possa viver naturalmente sobre grama, plantas herbáceas e arbustivas, ou em cercados, onde animais pesados matam tudo que estiver sob suas patas. As pequenas manchas de matas são insuficientes para preservar nossa biodiversidade e funcionam como “ilhas verdes” cercadas de pastos e monoculturas. Isso causa sérias consequencias nos genomas das espécies selvagens. A consanguinidade pode comprometer a viabilidade biológica das gerações futuras.

Organismos de maior porte, em especial, necessitam de vastas áreas, para a sua sobrevivência. Essas populações geralmente são limitadas por barreiras ecológicas naturais – como um grande rio ou uma cadeia de montanhas muito elevada, fazendo com que uma espécie permaneça durante milhares de anos numa mesma área de distribuição.

O longo tempo de “convivência” faz com que existam “códigos de tolerância e respeito” – todos invisíveis - mas que garantem o uso dos recursos naturais disponíveis num mesmo espaço. Isso ocorre através do que podemos chamar de “cooperação não declarada”. Quando um primata come um fruto na parte mais alta da floresta (dossel), ele está na verdade, alimentando outros animais que estão lá em baixo. Ele não está apenas “comendo”! Ele está “distribuindo” alimentos para outros organismos! Mesmo as sementes que engole, serão “defecadas” em outros pontos, renovando estoques de alimentos no futuro.  Ao comer, um primata está alimentando fungos, bactérias e formigas que vivem lá em baixo, na grossa massa de folhas mortas e detritos encharcados. Mas nós não enxergamos dessa forma. Somos simplificadores: apenas vemos “um macaco comendo”, e nada mais...

 Nas complexas florestas, os consumidores perfeitamente integrados em suas teias vão cumprindo seus ciclos biológicos, como que fizessem parte de uma grande família, onde mesmo não sendo pai ou mãe, avô ou avó, são mantidos fortes laços de dependência vital. 

Mas eis que resolvemos transpor barreiras com as nossas naus, carroças, e animais, permitindo que espécies conhecessem regiões nunca dantes visitadas. Atravessamos grandes rios e galgamos altas montanhas. Levamos animais de uma região para outra, onde eles nunca existiram e – com certeza – causamos alguns transtornos com isso, embora nem sempre tenhamos essa perfeita compreensão.

Uma floresta “montana” (floresta serrana) pode ser algo intransponível para quem sempre viveu na baixada. Plantas que vivem nas terras baixas não são as mesmas que vivem em pontos mais altos.  A espécie não consegue “reconhecer” um novo alimento em “terras estranhas”. Melhor ficar dentro de lugares onde tudo é imediatamente familiar.

Dos primatas recentes distribuídos pelo mundo, somente o homem (Homo sapiens) tem sido um vitorioso em conquistar e ocupar diversos biomas terrestres, incluindo os desertos de areia, os desertos de gelo, campos, savanas e florestas chuvosas. Para cada ecossistema, uma estratégia diferente, com armas adaptadas às necessidades de cada situação, abrigos degradáveis, construídos com materiais da própria floresta, conhecimento do entorno, do rio, do clima, do solo, das plantas e dos animais.

Nossos ancestrais, os “ecologistas trogloditas” eram bem mais competentes do que os atuais, em questões de sobrevivência natural. Digo natural porque o modo de vida do homem contemporâneo já depende muito de interferências “criadas” por ele mesmo, a partir de tecnologias extremamente sofisticadas. Isso não existia no passado antropológico. A saúde do indivíduo era o seu bem mais importante. Não havia muito com quem contar em situações críticas e emergenciais. Ou você era competente para resolver um desafio ou morria. Ferimentos graves e fraturas múltiplas eram situações muito comprometedoras. Ficar quieto, com alguém por perto – para não ser comido por um predador – talvez fosse uma das poucas iniciativas possíveis. Quem sabe mastigar alguma erva para amenizar a dor? Invocar espíritos de cura? Algum amuleto? O que importa é que fomos vencedores e estamos hoje dispersos por todo o planeta onde seja possível caminhar.

Não satisfeitos, inventamos máquinas especiais e fomos também investigar os ambientes aquáticos, tentando imitar peixes e anfíbios. Estamos bisbilhotando as fossas abissais, com “olheiros” sofisticados que nos mostram criaturas incríveis,  que gostaríamos de ver e tocar, bem perto. Mandamos espiões voadores para o planeta Marte e desejamos saber se existe vida um pouco mais distante. Somos criaturas tremendamente invasoras.

O nomadismo ainda está presente entre nós, como um impulso da pré-história a nos empurrar para o novo, cheios de curiosidades, mais aventureiro do que sensato, mais imediatistas do que conservadores. Isso pode ser perigoso...